Vozes ativas na mediação cultural: um relato sobre escuta, fala e o “vazio narrativo” nas fotografias de Mac Adams

Conheça a educadora Elidayana Alexandrino
Dedicado à memória de Monica Jun Honma

Esta escrita propõe relatar a experiência de mediação com os visitantes na exposição Mens rea: a cartografia do mistério, do artista Mac Adams. Pela primeira vez o público brasileiro teve contato com a sua obra; as fotografias foram expostas na Galeria de Fotos, entre abril e julho de 2018, no icônico prédio do Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista. Esta escrita surgiu da necessidade de fazer presentes vozes ativas dentro da educação não formal, é uma reflexão sobre formas de escuta, falas e a inconstância das imagens, a partir do diálogo estabelecido entre o público, as fotografias e os educadores. As experiências se fazem presente neste texto por meio da palavra escrita, levando em consideração a oralidade do processo dialógico.

Tinha imagens no meio do caminho

É comum olharmos para o céu e descobrirmos desenhos em nuvens, assim também fazemos quando olhamos as estrelas e juntamos os pontos. Dessa maneira somos capazes de criar inúmeras imagens em nossas cabeças; sendo assim, a maioria das nossas experiências visuais e imaginativas se dá no cotidiano.
Diariamente somos bombardeados por imagens e muitas vezes não paramos para olhar e refletir sobre elas, as imagens se fixam no nosso inconsciente e sem prevermos reaparecem em algum momento de nossas vidas, como um dejavu, essa experiência que causa estranhamento se emaranha com outras vivências visuais e às vezes não conseguimos distinguir lembrança de imaginação.

Mas quando paramos para refletir sobre as imagens, o que acontece? Em alguns casos, a dúvida, a incerteza entre confirmar, negar, se opor, se contradizer foi vivida por parte do público que teve contato pela primeira vez com as fotografias do artista Mac Adams [1], no Centro Cultural Fiesp. A exposição Mens rea: a cartografia do mistério [2] possibilitou ao público brasileiro uma experiência diferente com as imagens, a curadoria de Anne-Céline Borey e Luiz Gustavo Carvalho trouxe novas formas de ver/olhar.

As fotografias foram expostas em paredes, grades, caixotes, que de certo modo direcionaram o público para a última sala, onde havia uma mesa com muitas fotografias espalhadas e aos montes; entre fotos de viagens, também havia imagens de cenas de crimes, além de objetos que compuseram a cena, toda organizada à meia luz, entre eles lupa; luvas; elásticos; uma xícara de café, como se alguém acabasse de ter tomado; uma mesa de luz; jornais sobre crimes; e um lenço. Todos esses elementos despertaram de imediato a vontade de tocar, porém não era uma exposição interativa do ponto de vista do toque, a interação ficava por conta da percepção visual. A iluminação baixa, o trajeto labiríntico, os áudios [3] com histórias sendo sussurradas em várias línguas, porém fragmentadas, causaram o clima de mistério e ao mesmo tempo sedução.

Mac Adams cria suas narrativas visuais por meio da fotografia, sendo a grande maioria em preto e branco, apresentadas em dípticos ou trípticos (conjunto de duas ou três imagens); suas fotografias se relacionam com o cinema Noir americano, com a literatura de ficção policial, com contos de seu país natal e com a publicidade. O artista também faz uso de fotografia forense, utilizada em perícias para mostrar a cena encontrada em uma situação criminal, e vernacular, que são fotografias tiradas no contexto do cotidiano, em festas ou durante as férias, por exemplo. Essa diversidade de referências e de imagens a princípio parece não se relacionar, devido ao uso e à função, mas ao aproximá-las, o artista criou um jogo de percepção, em que o público foi colocado na cena, ou seja, naquele espaço projetado para confundir, alertar, despertar medos, mas também reflexão. Mac Adams deixa o “vazio narrativo”, um espaço entre uma fotografia e outra, justamente para que os visitantes possam compor, juntar pedaços, ideias e imaginação. Dessa maneira, quem completou a exposição foi o público, a partir das conversas estabelecidas.

Havia fotografias da Série Mistérios, da década de 1970, e também trabalhos mais recentes, além de imagens provenientes do Musée Nicéphore Niépce (Chalon-sur, Saône, França). Neste texto, trarei aspectos da relação do público com as obras de Mac Adams, levando em consideração a minha experiência imersiva como educadora, no contexto da mediação com os visitantes. A proposta dessa escrita não é um olhar de fora, mas um relato de alguém que esteve no território, afetando e sendo afetada a todo instante. Essa escrita parte da necessidade de fazer visíveis vozes ativas [4], essas vozes que são invisíveis no contexto do espaço da educação não formal, vozes dos educadores que são responsáveis pelo acolhimento e formação do público; trago uma reflexão sobre formas de escuta, diálogos e também a inconstância das imagens.
Pensando a exposição como um território, as imagens como elementos desse organismo vivo, todos os educadores e os visitantes formamos um corpo dentro desse espaço, e esse corpo caminhou acolhendo os acasos e as subjetividades, tomando como direção a metodologia da cartografia, “dando primado ao caminho que vai sendo traçado sem determinações ou prescrições de antemão dadas” (PASSOS e BARROS, 2015, p. 31).

Escrevi esse texto pensando nos educadores, profissionais importantes para a formação de um público crítico e sensível ao universo da arte, e também no próprio público, que é responsável por completar a exposição, por dar sentido a objetos a princípio inanimados, por se relacionar com eles e transformar pensamento em diálogo. O texto nasce de uma necessidade de presença de todas essas vozes; a palavra dita pode ser entendida em determinado tempo/espaço, mas a palavra escrita se torna matéria viva e se faz visível, tornando-se lugar de encontro, com o objetivo de contribuir para futuras discussões sobre os espaços da mediação cultural.

Figura 1 - Exposição Mens rea: a cartografia do mistério. Galeria de Fotos, Centro Cultural Fiesp. Fotografia de Camila Yumi, 2018.

O caminho, as trajetórias, as pistas e os encontros

Quando estamos diante de uma imagem, o que se passa conosco? Será que apenas contemplamos ou apreciamos as imagens? Será possível o contrário?
Diante das fotografias de Mac Adams, não somos sujeitos passivos, suas imagens são construções complexas que nos deixam na dúvida, são ambíguas e ao mesmo tempo que se mostram se escondem, então como ler imagens que querem contar e esconder histórias ao mesmo tempo?

Não existe uma forma única e correta de ler ou olhar imagens, elas se apresentam para nós de acordo com as nossas experiências; somos sujeitos culturais, então nos aproximamos das imagens à medida que elas estão mais próximas do que nos agrada ou nos repele.

Ao longo da nossa vida, olhamos as imagens como lemos textos (na cultura ocidental, lemos da esquerda para a direita, está incorporado em nós esse processo), porém olhar imagens não é a mesma coisa que ler palavras. Palavras dão significados às coisas, e cada palavra gera uma imagem, ou muitas; olhamos imagens tentando encontrar significados, buscando um entendimento, que muitas vezes só será possível depois de muito tempo.

Mac Adams não cria uma forma rígida, podemos olhar suas fotografias da direita para a esquerda, de cima para baixo, ou vice-versa, podemos nos relacionar com suas imagens de vários jeitos; diferentes de um livro, que tem as página e uma certa linearidade, as suas narrativas visuais fogem desse padrão, criando, dessa maneira, o espaço para o observador entrar e muitas vezes se perder.

Sendo nós sujeitos ativos, construímos significados para as imagens, mas será que as imagens também pensam? As imagens são criaturas pensantes que despertam pensamentos? Etienne Samain nos provoca quando diz que a imagem é uma “forma que pensa” [5]. Um pouco confuso, mas imagens nos confundem o tempo todo, e no caso das fotografias de Mac Adams isso é constante, somos confrontados com os dilemas que surgem a partir delas.

Voltando às perguntas iniciais sobre contemplar e apreciar, essas ações que dão um tom de passividade: as imagens nos contemplam, nos apreciam? As imagens nos questionam e se questionam, nos fazem pensar, então isso é um diálogo, ou seja, existe um encontro entre quem olha e o objeto olhado. Não há passividade em nenhum caso, há uma troca de olhares e sendo isso possível, precisamos vivenciar esse momento e tentar ouvi-las em vez de só olhá-las. As fotografias de Mac Adams, ao mesmo tempo que falam, se recusam a falar, guardam voluntariamente segredos e mistérios, portanto é preciso estar atento diante do que nos olha, diante desses olhos que se configuram na superfície das imagens.

Pensando na relação do público com as fotografias de Mac Adams, o primeiro olhar, tanto do público adolescente como do adulto, já levava para uma interpretação, a leitura se construía pelos elementos dados nas imagens, a imaginação juntava pedaços, e histórias violentas eram contadas em um tom de veracidade e certeza. Mas, ao longo da conversa entre nós: educadores, imagens e público, novas ideias iam surgindo, novas formas de perceber e se relacionar com as imagens iam sendo criadas e novas formas de escuta, porque neste diálogo, que ultrapassou o campo da razão e da lógica, o que estava entre essa escuta era o sensível, o que não se explica apenas pela racionalidade, mas por aquilo que nos afeta, as emoções.

O processo de entender as imagens para além do visível se passava por espaços de silêncio, de fala e de atravessamentos. Compreendemos “entendimento” como a rasgadura da imagem, ou seja, algo que ultrapassa a interpretação. Para Didi Huberman (2013), rasgar uma imagem é abrir seus significados, é estar disposto a entrar sem saber o que vai ser encontrado. Essa experiência do não saber foi muito significativa, pois despertou possibilidades para que as pessoas falassem sobre seus medos e desejos, o público se sentiu livre para imaginar, mas também argumentar questões da realidade dele.

Foi um desafio trabalhar nessa exposição, demandou um tempo para entender como dialogar com as pessoas toda a complexidade ali exposta, porque trouxe muitas inquietações; foram muitas leituras de textos, conversas e também silêncios para estabelecer uma relação com aquele organismo vivo e movente.

Figura 2 - Exposição Mens rea: a cartografia do mistério. Galeria de Fotos, Centro Cultural Fiesp, 2018. Acervo pessoal.

Figura 3 - Instalação A cartografia de um crime. Galeria de Fotos, Centro Cultural Fiesp, 2018. Acervo pessoal.
Diferentemente do que se julga sobre os educadores, nós fazemos uma pesquisa imersiva sobre a exposição. Inclusive, somos o primeiro público e como público, não somos neutros, somos pesquisadores que desenvolvemos ações a partir das nossas práticas, da nossa subjetividade, trazemos conosco uma carga emocional, portanto para nós foi difícil encarar imagens forenses. Antes da exposição abrir para o público, conversamos com o artista e a primeira pergunta que veio à cabeça foi: “Por que expor toda essa violência?”. Mac Adams deu a seguinte resposta: “Porque não podemos naturalizar”. Nesse momento compreendi que o problema não são as imagens, mas como nos relacionamos com elas, como enfrentamos o mundo das imagens. O artista dialoga com a violência porque ela faz parte do mundo e sua arte lida com o contexto social e cultural, portanto utilizar cenas que nos levam a crimes é abrir possibilidades para refletirmos sobre a sociedade em que estamos inseridos. A morte, a perversidade e as injustiças não estão isoladas nas imagens, mas fazem parte do sistema da vida, e essas questões precisam atravessar os muros dos noticiários, por isso a importância de ver este assunto na perspectiva da arte.

Figura 4 - Mac Adams. O mistério dos dois triângulos, 1976, Série Mistérios. Disponível em:<http://www.macadamsstudio.com/#mysteries>. Acesso em: 04 jun. 2020.
Uma coisa certa nessa relação do público com a exposição foi o estranhamento e o incômodo, as pessoas não ficaram indiferentes diante das fotografias, tanto que muitas conversas partiram dos próprios visitantes, e a busca por tentar entender a exposição gerou a procura por alguém que pudesse “explicar” o que estava acontecendo. Para o público, nós educadores tínhamos todas as respostas, e essa procura despertou a seguinte pergunta: “Qual a relação das pessoas que visitam a exposição com os educadores?”. A partir das conversas, percebemos que a grande maioria pensa que estamos lá para explicar tudo, informar, mas a realidade é que o processo de mediação se dá pelo encontro, ou seja, pela escuta atenta, o educador que pensa a educação num processo democrático não é um reprodutor, não reitera discursos, mas se aproxima do público querendo entender também a exposição a partir de outras falas. Paulo Freire nos elucida ao discorrer sobre a importância da fala e da escuta no processo de construção do conhecimento:

[...] quem tem o direito deve assumir o dever de motivar, de desafiar quem escuta, no sentido de que quem escuta diga, fale, responda. É intolerável o direito que se dá a si mesmo o educador autoritário de comportar-se como proprietário da verdade [...]

O espaço do educador democrático, que aprende a fala escutando, é cortado pelo silêncio intermitente de quem, falando, cala para escutar a quem, silencioso, e não silenciado, fala. (FREIRE, 2008, p. 117.)

O processo de fala e escuta foi possível com os diferentes públicos, nós educadores pudemos nos aproximar do universo particular de cada um, e eles do nosso, e assim construir juntos análises sobre a exposição. Dessa forma, ao saber que não havia uma única resposta, e que tudo era uma construção dialógica, foram possíveis os encontros e, nesse sentido, as rasgaduras também. A exposição possibilitou para nós educadores e para os visitantes uma nova experiência, que foi a de enfrentar as imagens e não apenas interpretá-las.

As relações estabelecidas durante o tempo/espaço do diálogo também foram possíveis devido à forma como as obras foram expostas. A curadoria e o artista trouxeram para o público algo novo, ao criar possibilidades para esses enfrentamentos, ou seja, a exposição não foi apreciativa do ponto de vista passivo e ao contrário do que se pode pensar, nem toda experiência interativa necessita da intervenção do toque. Ao criar o “vazio narrativo” e toda uma cenografia, foi possível a interação mental e também um deslocamento do corpo, que não estava condicionado a um trajeto apenas, porque as imagens estavam apresentadas em diferentes suportes e alturas, o que possibilitou um deslocamento do olhar, além da liberdade do ir e vir, sem roteiro pré-estabelecido.

Figura 5 - Público visitando a exposição Mens rea: a cartografia do mistério, Galeria de Fotos, Centro Cultural Fiesp, julho de 2018. Acervo pessoal.
Olhar de cima, de fora e de dentro

Mac Adams diz que olhar as fotografias é como ver uma “paisagem com vales, colinas e rios de imagens”[6]. A forma como as fotografias foram expostas na instalação Cartografia de um crime, em caixotes e em uma mesa, nos fez deslocar nosso corpo e mudar nossa maneira de ler o todo; sendo o título da exposição Mens rea: a cartografia do mistério, fomos convidados a estar nesse território de montes de imagens, compondo essa cartografia também.

Estar nesse ambiente foi uma experiência do olhar, não apenas do ver, porque como Márcia Tiburi evidencia: “ver é reto, olhar é sinuoso [...] ver é um nascimento, é primeiro. O olhar é a ruminação do ver”, ou seja, quem apenas passou os olhos só viu; olhar é uma ação que requer tempo, “o olhar é feito de mediações próprias à temporalidade. Ele sempre se dá no tempo, mesmo que nos remeta a um além do tempo”[7]. Alguns visitantes passaram horas na exposição e outros a visitaram mais de uma vez, e a cada nova experiência, novas formas de olhar foram sendo exploradas.

É importante destacar o quanto nossa relação com as imagens se altera quando as percebemos em outros contextos, então o tempo todo nos perguntávamos: “Por que o artista usa fotografias de crimes juntamente com imagens de viagens, álbum de família?”, “O que ele cria quando faz uso de imagens que não são do campo da arte?”.

Para responder a essa pergunta, primeiro precisamos estar cientes de que a fotografia possui diversas funções na sociedade de que ela nunca será a realidade completa, ela é sempre um recorte; quem nos garante que a fotografia é um documento, testemunho de um fato? A fotografia é sempre uma nova realidade. Talvez Mac Adams esteja justamente questionando e pensando a fotografia como uma construção a partir de elementos reais e imaginados.
Para Armando Silva, a fotografia é antes de tudo um fantasma:

[...] a foto não é o objeto nem a pessoa que se representa diante de nossos olhos, mas seu fantasma: seu efeito de luz. Essa circunstância acentua o sentido imaginário da intercomunicação sempre que uma fotografia estiver presente. (SILVA, Armando, 2008, p. 30.)

Se a fotografia é um fantasma, então, ela é antes de tudo a própria morte? Será? O que atiçava a curiosidade do público era justamente se algumas daquelas imagens eram de pessoas que realmente foram mortas e se o artista era um fotógrafo forense. As reações do público diante das imagens de nus e nas quais havia sangue na maioria das vezes era de repulsa; outras pessoas, quando percebiam o contexto das imagens, iam embora desnorteadas. Então, essas reações podem indicar que cada ser humano vê antes de tudo o que está dentro de si, ou seja, o medo de se deparar com seus próprios fantasmas, angústias e anseios.

Algo constante na composição de suas fotografias são os reflexos e sombras, esses elementos são característicos dos filmes de suspense, são duplos, formas que confundem e desviam; o público se sentiu bastante atraído. Martins nos alerta sobre os simulacros que as fotografias criam:

A modernidade impregnou-se de espelhos para propor-se através de um discurso visual marcado pela lógica do reflexo e das amplificações e dos despistamentos do duplo que há nele em seu referente. É a mesma lógica em que se situa a própria fotografia. Justamente por isso, o mero caminhar pelas ruas da cidade moderna põe o transeunte continuamente em face de uma sociedade, simultaneamente, de pessoas e de simulacros de pessoas: fotografias publicitárias, vidros, espelhos, labirintos em que o falso e o verdadeiro estão juntos. (MARTINS, José de Souza, 2013, p. 167.)

Na exposição, “o falso e o verdadeiro” andaram juntos, a dúvida esteve presente. Alguns visitantes saíram satisfeitos com as confabulações criadas naquele tempo/espaço, já outros se sentiram muito angustiados, porque queriam respostas imediatas, só que as respostas demandam tempo para surgirem, uma simples busca no Google não foi capaz de responder o que se passava ali. Mas, mesmo assim, algumas pessoas insistiram e nos confrontaram exigindo respostas pontuais. Essa atitude nos faz pensar sobre os problemas do imediatismo dessa era, das respostas prontas, dadas nos sites de buscas da internet; a rapidez das informações confunde as pessoas e algumas não estão preparadas para o não saber, para a investigação a partir da percepção e do processo de diálogo.

As imagens comunicam algo, cada pessoa a partir de suas vivências pode conversar com elas. O trabalho de Mac Adams é intrigante porque é uma obra aberta, ela dá elementos para que as narrativas sejam construídas e não fechadas em si, por esse motivo o público se sentiu convidado a entrar em suas histórias e criar a partir delas, como num terreno fértil em que se planta a semente e dela nasce o fruto, mas também como num terreno árido, ou mesmo numa areia movediça. As leituras das imagens foram muitas, foram como estradas cheias de rotas para lugares, às vezes, conhecidos e em muitos casos totalmente novos.

Os grupos que visitaram a exposição trouxeram diferentes visões, para além do crime, visões críticas, poéticas, engraçadas, mas os estereótipos surgiram com força, assim como na questão de gênero: homem x mulher; fragilidade feminina x força masculina;“Femmefatale”, fetiche x relacionamento abusivo; a mulher como vítima x o homem como o assassino. As pessoas ao verem uma série de fotografias de mulheres, semelhantes ao retrato 3x4, já diziam: “são todas vítimas”, poucos diziam que poderiam ser suspeitas. Quando indagamos porque achavam que eram vítimas, vinha o silêncio; ao refletirem, entendiam que o que estavam dizendo era reproduzir aquilo que está dado como certo, ou aquilo evidenciado nas estatísticas, ou mesmo o que o cinema conta.

Os medos foram trazidos à tona. A maioria das mulheres analisou as fotografias e criou narrativas em que as personagens femininas sofriam violência e eram assassinadas pelos homens, e para os homens a mulher era a vítima. Se o público levantou esses aspectos é porque o crime estava presente, porém as observações foram feitas com base na realidade, ou seja, as pessoas não esconderam que suas interpretações partiram do mundo real, porque naquele momento pensaram a fotografia não como ficção, mas como o que acontece na sociedade, já que a realidade de fato é violenta. “Mas quem realmente era o criminoso?” As indagações reverberaram em cada um de um jeito.

Figura 6 - Mac Adams. Dúvida, 2009. Exposição Mens rea: a cartografia do mistério. Galeria de Fotos, Centro Cultural Fiesp. Acervo pessoal.

A vida e a arte se interligam, as observações das pessoas partiram de seus medos e desejos. Muitas conversas foram propostas pelo público, a busca por tentar entender fez nascer o diálogo. A exposição despertou novas formas de perceber e criar relações, o público se sentiu provocado a ponto de querer expor o que pensava e sentia, e a busca de tentar entender o que via.

Os diálogos que aconteceram na exposição foram muito significativos, cada um tentou preencher o “vazio narrativo”, deixado pelo próprio artista propositalmente, a partir de suas experiências, sua imaginação, percepção, sensação e uma gama de sentimentos, foi um processo de descoberta e ao mesmo tempo ocultação. A ambiguidade das imagens despertou muitas reações, e cada um levou algo para si da experiência vivida.

Do adolescente ao adulto foi possível o diálogo. Por mais que as análises tenham sido distintas, elas existiram e as imagens acessaram essas pessoas e trouxeram à superfície suas inquietações, impressões, desconfortos e em muitos casos o espanto, a ponto de o corpo reagir. Essa reação sempre acontecia na última sala, onde havia a mesa repleta de fotos, em uma das paredes uma série com retratos de homens negros e em outra uma cena íntima de um casal sendo observado. Foi nessa sala onde o preconceito se fez mais presente, porque as fotografias dos rapazes negros eram interpretadas pela maioria do público como sendo dos assassinos dos supostos crimes, e perguntávamos: “Mas o que evidencia que eles são criminosos?”. Novamente ficavam mudos, então recapitulávamos a conversa, voltávamos para o começo, para o título da exposição, “Mens rea”, que significa “espírito criminoso”. Quando dizíamos essa informação, o público se assustava e percebia que a mente criminosa poderia ser a de quem estava julgando.

Figura 7 - Roda de conversa com o público sobre a presença feminina nas fotografias de Mac Adams, julho de 2018. Acervo pessoal.
A exposição surgiu num momento em que a arte contemporânea no Brasil passava por uma grande discussão, artistas e instituições sofreram censura e a questão do corpo ainda é tabu na sociedade brasileira. Portanto, houve uma classificação indicativa para maiores de 12 anos, acompanhados de seus responsáveis, e na última sala a indicação subia para 16 anos. Por esse motivo, o maior número de visitantes foi de adultos, mas grupos de adolescentes visitaram a exposição e famílias com crianças pequenas tiveram acesso também, o que permitiu discussões e pontos de vistas sobre o que estava ali exposto, inclusive alguns pais apoiaram a classificação e outros reprovaram, demonstrando a diversidade de opiniões do público.

As fotografias de Mac Adams mexeram com o imaginário coletivo, foram capazes naquele contexto da exposição de gerar muitas discussões. Agora o destino de sua arte narrativa é certo e ao mesmo tempo incerto - certo porque quem viu não pode mais “desver” e incerto porque quem vai decidir o que fazer com o que viu é cada um, e cada um de um modo; nesse sentido, o “vazio narrativo” será preenchido ao longo da vida e de outros encontros com as imagens.

Finalizo o texto, que começou a ser redigido em 2018, num momento político conturbado, que foi piorando com a ascensão do autoritarismo no Brasil. Com perguntas, uma espécie de mistério, 2020, o ano em que estamos, se apresenta como decisivo no que diz respeito ao futuro dos museus e centros culturais. Acompanhamos as notícias do desmonte da cultura, demissões em massa de educadores, entre outros profissionais, em todo o mundo. O afastamento social revela as desigualdades e injustiças; a pandemia, que já mata milhares, atinge toda a sociedade, portanto é urgente pensar o futuro da educação nos espaços da cultura e o porquê de quando surge uma crise esse é o primeiro setor a ser atingido. O coronavírus não pode ser o culpado desse crime ou pode? Quantas imagens terão que arder na nossa retina até encontrarmos uma solução para essa situação caótica? Quantas vozes emudecerão nas paredes de mármore da casa das musas? Se a arte e a educação são ainda manifestações humanas que nos unem, como continuar unidos mesmos distantes? Reflexões para um novo capítulo dessa história que perpassa os muros dos noticiários e das multitelas.


NOTAS
[1] Mac Adams nasceu em 1943, em Brynmaswr (País de Gales, Reino Unido). Vive nos Estados Unidos desde o fim dos anos de 1960, é considerado um dos fundadores da NarrativeArt, corrente artística conceitual surgida na década de 1970. Traz uma abordagem semiótica na construção de suas fotografias, dessa maneira cria narrativa visuais, que se aproximam do cinema.
[2] A exposição esteve aberta para visitação de 18 de abril a 8 de julho de 2018, na Galeria de Fotos do Centro Cultural Fiesp, na Avenida Paulista, em São Paulo.
[3] A curadoria realizou um convite a nove autores (Dylan Thomas Hayden, Guilherme Gontijo Flores, Johannes C. S. Frank, Marcus Fabiano, Matilde Campilho, Pascal Marquilly, Ricardo Domeneck, Tal Nitzán e Victor Heringer) e a partir das fotografias de Mac Adams, eles criaram textos, dessa forma surgiram diálogos entre a literatura e o universo visual do artista. Esses textos foram transformados em áudios, que eram sussurrados em determinadas partes da exposição.
[4] As vozes ativas a que me refiro são dos educadores, profissionais fundamentais para formação do público. Camila Yumi e Renata Cirilo estiveram presentes comigo na criação das ações educativas, desenvolvendo pesquisas e diálogos, durante os três meses da exposição. Os demais educadores, Allyne Costa, Anderson Tunes de Souza Mello, Cristiane Gagine Mari, Diana Proença Modena, Eloisio Godinho, Emerson Prata, Erica da Costa Santos, Gabriela FiorindoFuza, Lorrane Campos Rodrigues, Monica JunHonma, Rogério Mourtada e Vanessa Rigo, todos contribuíram com o processo da mediação, ora como público, ora como colaboradores.Aqui deixo meu agradecimento a toda a equipe e também aos analistas de atividades culturais, Diana Vaz e Jarbas S. Galhardo, ao mediador cultural Jonatã Ezequiel e à equipe de segurança e de limpeza do Centro Cultural Fiesp, que contribuíram para que as atividades pudessem ser realizadas no decorrer dos meses.
[5] SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 2012 (p. 23)
[6] Texto do folder da exposição Mens rea: a cartografia do mistério. Sesi - SP, 2018.
[7] Texto disponível em: . Acesso em: 04 mar. 2019.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADAMS, Mac. A cartografia de um crime. Folder da exposição Mens rea: a cartografia do mistério. Curadoria de Luiz Gustavo Carvalho e Anne-Céline Borey. Sesi SP, 2018.
BARROS, Regina Benevides; PASSOS, Eduardo. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓSSIA, Liliana da (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa, intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 37ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
HUBERMAM, Georges Didi. Diante da imagem: questões colocadas aos fins de uma história da arte. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013.
MARTINS, José de Souza. Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo: Contexto, 2013.
SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.
SILVA, Armando.Álbum de família: a imagem de nós mesmos. Tradução de Sandra Martha Dolinsk. São Paulo: editora Senac São Paulo; Edições SESC SP, 2008.
TIBURI, Márcia. Aprender a pensar é descobrir o olhar. Disponível em: ender.htm>. Acesso em: 04 mar. 2019.

Comentários

  1. Palavras reflexivas, com muita sensibilidade e provocações.
    Parabéns pelo texto Elidayana!

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