Educação Patrimonial para além do slogan: os Inventários Participativos como possibilidade de decolonizar as práticas de preservação

Muito se fala da importância da Educação na nossa sociedade. É recorrente o argumento de que “é preciso estudar para ser alguém na vida”, que a educação é capaz de deslocar sujeitos na estratificação social, de que “quem não estuda não é inteligente”, é incapaz. Esse argumento é comum tanto nos meios de comunicação, nos discursos oficiais, quanto em conversas mais informais. No entanto é necessário politizar o que chamamos de educação, para que ela não se torne um slogan[1], vazia de significados. À qual educação se refere esse argumento? 


A educação não deve assumir a sua faceta mais utilitária, funcional, quase mecânica na escalada de “conseguir um bom emprego” ou algo que se assemelhe a isso em detrimento a sua verdadeira função na sociedade. A educação deve emancipar sujeitos, ampliar suas perspectivas sobre o mundo que os cerca, desenvolver capacidades críticas e proporcionar a construção autônoma de sínteses sobre os saberes diversos da sociedade. Evidente que num país repleto de desigualdades, o discurso meritocrático utiliza-se da educação como uma justificativa para o “sucesso” ou o “fracasso” de um indivíduo, ignorando (propositalmente) que esse indivíduo está imerso num coletivo, num contexto cheio de contradições e implicações históricas. 

Essa situação, por consequência, se aplica também à Educação Patrimonial, e revela muitos aspectos para entendermos o conceito de “conhecer para preservar”, pois desloca o verdadeiro objeto da Educação Patrimonial, para o campo do conhecimento utilitário, transferência de conhecimento de forma bancária, como nos aponta Paulo Freire (2011). A Educação Patrimonial não deve se ater à máxima acima mencionada, pois despotiliza o sentido da sua prática. Segundo Scifoni (2019): 

Despolitiza porque, de um lado, credita à “ignorância” da população as mazelas do patrimônio, o que acaba por desresponsabilizar determinados sujeitos sociais ao atribuir a um conjunto geral, indefinido e ser genérico chamado de “população”, a culpabilização pela situação dos bens culturais. Deixa de se explicitar e debater os processos que estão por traz destas intervenções, assim como os interesses políticos e econômicos e as formas de atuação para viabilizá-los. (p.25) 

Nessa perspectiva, é necessário que percorramos um caminho que vise desconstruir a ideia de que a educação é transferência de saberes, saberes esses que são específicos, considerados como ciência numa ótica eurocêntrica. Desconstruir que a educação é a simples transferência de saberes, também exige que desconstruamos a ideia de quais saberes que devem ser transmitidos. Tolentino (2018) nos convida a refletir sobre a origem desse “saber necessário” que se diz universal, quando na verdade é um recurso político-econômico de legitimação de um sistema que, embora esteja presente na maior parte do mundo, não abarca as formas e estruturas de saberes locais, próprios de um modo de vida: 

A força política, econômica e militar do colonialismo e do capitalismo moderno foi o que possibilitou a supremacia de uma epistemologia ocidental, impondo-se sobre os povos e culturas não-ocidentais e não-cristãos, constituindo-se, assim, um epistemicı́dio relacionado aos saberes e conhecimentos de grupos sociais subalternos e oprimidos. E a legitimação dessa epistemologia somente foi possı́vel por conta de um vasto aparato institucional – centros universitários, sistemas de peritos, pareceres técnicos – tornando difícil o diálogo com outros saberes. (p.48) 

Com isso, podemos entender que esse contexto também permeia a prática da Educação Patrimonial, desenvolvida desde a fundação do SPHAN (hoje, IPHAN) na década de 30 do século passado até hoje (salvando-se algumas exceções). Segundo Scifoni, é preciso “contestar a interpretação de que há uma relação indissociável e de causalidade direta estabelecida entre os dois termos, como se o conhecimento levasse, necessariamente, à preservação do patrimônio” (p. 18). 

A afirmação de Scifoni e o excerto de Tolentino nos apresentam duas problemáticas. A primeira se refere a formação do que se entende por “conhecimento”, “saber”. De acordo com o autor, essa forma de designar o que vale como conhecimento e o que não é legítimo, não é arbitrária, e nem inocente. Ela foi construída como projeto político de genocídio de povos e saberes que habitavam esse solo no momento do confronto colonial. De modo que, para dizimar seu povo é necessário dizimar também sua forma de transmitir e construir saberes. Isso dificultaria os processos de resistência e construiria um novo mundo epistemológico, ao qual sempre se está “em desvantagem”, já que esse novo mundo não comporta a cosmovisão desses povos e seu desenvolver científico (que nada mais é do que o modo de sistematizar o conhecimento que se reune a respeito do mundo que nos cerca e ao qual pertencemos). 

A segunda problemática, apontada por Scifoni é a necessidade de desvinculação entre conhecimento e preservação. Nesse sentido há de se considerar que o entendimento sobre “conhecimento” prevalecente nas instituições de salvaguarda do patrimônio é àquela compatível com a perspectiva apresentada por Tolentino - o conhecimento eurocêntrico, construído por meio de um genocídio epistemológico, calcado nas raízes coloniais (ainda presentes na nossa sociedade). Esse conhecimento, de acordo com a máxima “conhecer para preservar” deveria garantir o apego dos povos aos patrimônios eleitos. É nesse sentido que adentramos na obsolescência dessa máxima, porque não se preserva aquilo que não se identifica, não há “conhecimento” capaz de gerar identificação com o apagamento da nossa própria narrativa, nossa própria história. 

Dessa forma o “conhecer para preservar” é, como aponta Scifoni, uma “ideia fora do lugar”, pois embora já tenha tido um apelo para um contexto histórico específico, hoje ela nos confronta com a necessidade de desconstruir o que entendemos por conhecimento, patrimônio e preservação. 

Nesse sentido, a formulação da metodologia dos Inventários Participativos aponta para uma prática decolonial de Educação Patrimonial, pois busca garantir uma outra educação possível - como um direito social fundamental para a sociedade, que visa não só levar a conhecer, mas a apropriação do patrimônio eleito pelo próprio grupo. Além disso ela valoriza os saberes locais e não os subjuga aos saberes acadêmicos (pautados na visão eurocêntrica), reafirma que o conhecimento do povo é a sua forma de resistir e construir seu mundo. Fortalece identidades, modos de fazer, saber, enfim, sua ciência da vida. Portanto, os inventários participativos abrem espaço para a formação de perspectivas críticas ao patrimônio oficial, demarcando o desejo dos grupos em preservar aquilo que lhes convém, que lhes é caro, e não aquilo que representa seu próprio infortúnio. Promove a possibilidade do ressurgimento de epistemologias suprimidas no passado, e a construção de outras que sejam representativas para seu contexto histórico e social. Por fim, se faz imperativo que repensemos como mobilizamos a educação para além do slogan e, como sugere Scifoni, que coloquemos uma ideia no seu devido lugar: afinal, quem deve ser educado sobre a preservação? 

Referências Bibliográficas 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011 

SCIFONI, Simone. Conhecer para Preservar: uma ideia fora do tempo. Rev. CPC, São Paulo, n.27 especial, p.14-31, jan./jul. 2019 

TOLENTINO, Atila B. Educação Patrimonial Decolonial: perspectivas e entraves nas práticas de patrimonialização federal. Sillogés – v.1, n.1, jan./jul. 2018 


[1] Slogans variam do escrito ao visual, do cantado ao vulgar. Quase sempre, sua natureza simples e retórica deixa pouco espaço para detalhes, e, como tal, servem talvez mais a uma expressão social de propósito unificado, do que uma projeção para uma pretendida audiência. Slogans são atrativos particularmente na era moderna de bombardeios informacionais de numerosas fontes. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Slogan. Acesso: 10/11/2019, 20h30. 
A utilização do conceito pretende dar ênfase que a Educação Patrimonial precisa ser analisada para além de superficialidades. A prática e a pesquisa a respeito dela devem se ater ao entendimento de seus processos e contextos históricos, políticos e sociais. Além disso, utilizou-se o termo para contribuir com a ideia apresentada pela autora Simone Scifoni a respeito da máxima “conhecer para preservar”, como um slogan no debate sobre Patrimônio no Brasil.

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