Meta(o)dologia 4 - Se atentando às funções, des-funções, re-funções (ou à própria arte)

Se atentando às funções, des-funções, re-funções (ou à própria arte-contemporânea)

Começou com uma frase: "A estética da política é a guerra". A frase deveria estar anotada em algum caderno que se perdeu no tempo. Não conseguia lembrar de quem era. E remexendo a internet achei o autor, era Artur Barrio. A frase existia no contexto de 2010, numa instalação na 29ª Bienal de São Paulo. O tema era "Há sempre um copo de mar para um homem navegar". Hoje soa ingênuo.
A frase ficou lá, em algum lugar da memória, e foi acessada em decorrência dos últimos acontecimentos no Brasil de 2020. Dez anos depois, estamos mais duros, menos penetráveis.
A pesquisa para achar a autoria da frase me levou para outros caminhos possíveis. Refleti sobre a dificuldade de mediar Barrio, porque sua obra é permeada pelo cheiro putrefato, pelo incômodo físico de uma presença corpórea. Lembro que não tinha dificuldade de mediar sua instalação no contexto da Bienal, porque era uma obra pra sentir, e não dizer. Mas aqui é necessário dizer para sentir (?).
Então a mediação exigiu um percurso duro, difícil, muitos acessos, muitas investigações, muitas escolhas. A saída emergencial foi apelar para grande questão investigativa da Arte Contemporânea - a função. Caminho óbvio, mas ainda não superado pelos observadores.
imagem:http://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com/
"A&E: Como se dá a relação de sua obra – de características antiinstitucionais – com o circuito artístico-cultural, a partir do momento em que é exibida em instituições museológicas? 
AB: Exibida não deixa de ter um certo di(e)sfuncionamento haja vista ser palavra da qual meu trabalho discorda já que geralmente ele se enrola, escarafuncha, agride, luta e desestrutura o espaço onde/aonde finalmente situar-se-á como um corpo só, divorciado dos demais módulos que compõem a instituição; daí achar essa relação um tanto quanto difícil ou pelo menos inexistente; digamos que a instituição suporta minha obra cronometricamente, após o que tudo volta a ser como sempre foi de parte a parte. Penso que não há relação, mas sim um suportar momentâneo, que possívelmente chamar-se-ia de prazeroso, talvez um orgasmo profissional, mas, ainda assim, um orgasmo." (trecho da entrevista de Artur Barrio para Revista Arte e Ensaios - No hemisfério sul, 2012. Link da entrevista completa disponível em referências)
Por meio desse gancho, escolhi entrar na mediação pela necessidade de entender que (dis)função era essa. "O Livro de Carne" é uma instalação, que se deteriora ao vivo, a cada dia em que está exposto. Vai fedendo, se decompondo. É preciso sentir esse cheiro. Mas, por que um pedaço de carne apenas não assume essa necessidade? Por quê um pedaço de carne em formato de livro?
Que livro é esse? O que nele se (in)escreve?
Fica aberto para o observador na mediação, como ele deseja interpretar esse pedaço de carne em formato de livro. E fica aberto porque acredito que esse livro pode ser muitos. No meu processo individual, esse livro assume a cara dos acordos que apodrecem, das palavras que se decompõem no meio de uma situação. Ao ver a obra, e me colocar nesse lugar de observá-la, eu imediatamente me conduzi a duas reflexões essenciais: 1) a constituição brasileira de 1988; 2) a teoria que sustenta o capitalismo.
A primeira foi imediata, porque estamos assistindo dia após dia, o nosso acordo social apodrecer e feder, cada dia mais. Assistimos esse livro se decompor, e visualizamos seu estado precário. A segunda é uma extensão da primeira. A teoria que sustenta o capitalismo, e sua aplicação neoliberal, fede, se decompõe, não mais nos deixa ler, nem folhear sem que nossas mãos tenham cheiro de morte. Poderia ainda, forçar uma terceira reflexão, essa um pouco menos delineada, sobre a bíblia sagrada e seus valores cristãos. Esse terreno é tão fedorento agora (pela emergência do fascismo), que não creio ser possível adentrá-lo aqui.
Enquanto essas reflexões passeavam pela minha cabeça, enquanto observadora, pensava que não haveria possibilidade de torná-la parte, como de costume, das mediações, porque ela iria totalizar uma experiência. Optei por não incluí-la na mediação, e só expô-la como parte do processo de criação da meta(o)dologia. Essa decisão, veio acompanhada por uma investigação teórica pertinente:
"A filosofia oferece muitos exemplos das relações entre pensamento e arte; creio ser necessário, no entanto, evitar dois extremos na formulação desse problema: a relação “didática”, pela qual a arte simplesmente ilustra dada teoria, e a relação “romântica”, pela qual a arte se torna refúgio de algo que não pode ser pensado de forma alguma." (RAJCHMAN, p. 97, 2006)
O autor nos ajuda a compreender que a Arte-Contemporânea também se compõe num conjunto de ideias, da composição de um pensamento. Que não é pedagógico por si só, no sentido de ilustrar o pensamento, e nem inalcançável enquanto pensamento. Isso me revela que a minha percepção sobre "Livro de Carne" não pode ser uma totalidade de pensamento sobre a obra, ou seja, ela não ilustra minha teoria sobre os livros que se decompõem.
Mais adiante, o autor vai trazer outra reflexão possível, sobre a Arte-Contemporânea, que ajuda a localizá-la dentro de um contexto social, cultural e econômico de formação de pensamento, muito mais complexo do que sua própria crítica:
"O problema em dizer que “arte contemporânea” é apenas pós‑suporte, pós‑virtuosismo, pós‑estúdio, pós‑“cubo branco”, pós‑“absorção”, neovanguarda ou arte “antiestética” (ou uma “condição” na qual a arte “morre”) é que isso quase nada nos diz sobre o que essa ideia de arte é ou era ou sobre o que ainda podemos fazer dela. Em vez disso, essa abordagem tende a inserir a “arte contemporânea” em narrativas melancólicas de perda, morte, obsolescência, infladas por narrativas exageradas de declínio, o que desencoraja narrativas mais complexas, distinções conceituais mais precisas, que permitiriam novas ideias ou novas maneiras de considerar a questão."(RAJCHMAN, p.100, 2006)
Com esse trecho, foi possível compreender, porque relacionei o "Livro de Carne" a uma crítica contextual, mesmo quando intencionava a entrada pela função.
Como resultado tive uma meta(o)dologia que pretende buscar um questionamento sobre função, mas que incita um desdobramento crítico, usando a obra como "ilustração" dessa crítica. O resultado é inversamente correspondente ao texto e Rajchman. Concluo, então e por ora, que a mediação é um campo minado para a Arte-Contemporânea. Retomo, invariavelmente, a frase que inicia o percurso - A estética da política é a guerra.

Para ver a mediação dessa obra clique aqui

Reflexões primárias

- Existem muitos livros de carne (?)
- não-palavra
- os ditos que não valem mais
- os ditos que apodrecem
- do olhar imediato

Referências

https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa47/artur-barrio
http://arturbarrio-trabalhos.blogspot.com/
http://www.23bienal.org.br/universa/pubrab.htm
https://www.escritoriodearte.com/artista/artur-barrio
https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/o-anti-sistema-de-barrio-1.8706
http://arquivo.bienal.org.br/pawtucket/index.php/Detail/entidade/47082
http://www.galeriamillan.com.br/attachment/pt/59f24332dca8370c7d8b4568/TextOneColumnWithFile/5a95b82a2bab2cac558b4567
https://cimitan.blogspot.com/2011/10/arthur-barrio.html?m=1
https://www.publico.pt/2017/02/12/culturaipsilon/noticia/artur-barrio-incomodame-profundamente-a-objectualidade-da-arte-1761148
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_visual/artur_barrio.html
https://diplomatique.org.br/a-memoria-artistica-da-ditadura/arthur-barrio-situacoes-trouxas-ensanguentadas-1970_/
Entrevista citada: https://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2012/01/ae17_entrevista_Artur_Barrio.pdf
RAJCHMAN, John. O pensamento da Arte-Contemporânea.Instituto forart de Pesquisa em Arte Contemporânea Internacional. 2006.

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