Relato de convivência com uma obra - Abajur, 2010. Cildo Meireles




Cildo Meireles - "Abajour" - 29ª Bienal de São Paulo - 30 segundos no Ar - joaosaboia.com

Cildo Meireles é um artista já muito consagrado no circuito nacional e internacional da arte contemporânea. No entanto, sua obra ganha fôlego a cada novo ciclo de produção do artista, porque dialoga com questões ainda tão enraizadas na sociedade. Como não recordar das notas de dinheiro carimbadas com os dizeres: “Quem matou Herzog?”(1975), no contexto da morte de Marielle Franco no dia 14 de março de 2018? A pergunta sempre será atualizada, porque neste país empilham-se corpos negros, militantes, lideranças indígenas, lideranças populares, e tantas outras figuras que lutam por igualdade e justiça.


Não obstante, a obra de Cildo também se atualiza à medida que a arte contemporânea se afirma como um elemento-mercadoria nas prateleiras das negociações milionárias das galerias. Não irei aqui fazer uma retrospectiva da vida e obra do artista. 

Uma obra que se atualiza, e aí a coloco com um olhar bastante particular, é Abajur de 2010. Essa obra me desperta interesse por algumas entradas. É uma instalação montada na 29ª Bienal de São Paulo. Já comentei sobre outra obra dessa mostra aqui, talvez porque tenha sido a primeira exposição em que trabalhei como arte-educadora e tenha uma interminável lista de pequenas histórias - qualquer dia desses me animo em compartilhá-las. Mas enfim, o Abajur era uma obra bastante importante na mostra e chamava atenção dos visitantes.

A obra consistia em uma sala, com dois andares. No andar de baixo ficavam os trabalhadores que produziam energia para que, no andar de cima, uma imagem fosse projetada (como um abajur mesmo, só que gigante). A imagem projetada era de uma caravela, deslizando no oceano, gaivotas e nuvens, ao fundo terra firme. Para que o abajur funcionasse era necessário a mão-de-obra de alguns trabalhadores que se revezavam em turnos de trabalho durante o tempo todo ao longo do dia.

Eu costumava levar meus grupos ou visitantes espontâneos nessa obra, porque sentia que ela funcionava em como uma metalinguagem sobre o trabalho. Não só o meu, mas o trabalho na sociedade. A primeira vez que entrei nela, fiquei refletindo sobre quanta energia, nós trabalhadores, produzimos no mundo, para que poucos possam gozar. E me solidarizava com os trabalhadores contratados para fazer o abajur funcionar. Não sabia se eles sabiam que aquilo era parte de uma performance de arte. Talvez porque nunca tenha tido a chance de conversar com nenhum deles. Também não sabia o quanto de dinheiro eles ganhavam para fazer aquele trabalho. Não sabia de onde vinham, não sabia quem eram, nem se gostavam de arte. Eu não sabia nada sobre eles, e eles não sabiam nada sobre mim. Mas nos víamos todos os dias, eu repetindo meus movimentos em torno da imagem projetada com meus grupos, eles, repetindo o movimento de uma espécie de moinho, sem cessar.

Com o tempo, fui apurando, ou melhor, fui criando outras possibilidades de ver aquele trabalho. A imagem projetada, que antes era só uma imagem para mim, começou a ganhar mais significados. Curioso que me tardou perceber que aquelas caravelas falavam de um outro processo. Talvez porque estava bastante aficionada com os trabalhadores do andar de baixo. Pensei então nos processos de colonização, da invasão portuguesa. Do fim do mundo que ocorreu em 1500 para os povos que aqui viviam. Quantos fins de mundo já existiram? Mas fiquei pensando nas caravelas, e nos homens que de lá desceram, e iniciaram um fim de mundo que nunca teve fim, até hoje esse fim se estende. Depois, pensei no moinho, o mecanismo operado pelos trabalhadores. Esse moinho também dizia sobre quem os operava nos grandes engenhos. Toda a exploração, toda morte, toda humilhação, toda desumanidade da escravidão no Brasil, essa terra que já teve um par de fins de mundo.

Aquela obra se tornou, então, meu posto de trabalho aos sábados. Existia uma escala, a qual nunca cumpria, porque tinha decidido ali passar os meus sábados.

Eu já chegava no Ibirapuera cansada. Eram tempos malucos em que eu morava há 3 horas do meu trabalho, saía de casa às 5 da manhã, para chegar às 8h30 na zona sul de São Paulo, eu morava na extrema leste. De lá, do trabalho, seguia pra faculdade. Saía da Bienal por volta das 13h. Ia andando até o bandeco da medicina, na Santa Cruz (não vou me ater aqui às geografias da cidade), almoçava por 2 reais com crachá da universidade. Lá pelas 15h tomava o metrô linha azul até a zona norte. Nisso já eram quase 16h. Esperava o ônibus para outra cidade da região metropolitana, uma fila imensa. Quase sempre conseguia pegar o das 16h45. Nesse intervalo, lia os textos atrasados das aulas, que se misturavam com os textos sobre arte, e se misturavam com meu sono, e também com as conversinhas com os colegas. Chegava na faculdade, depois de cruzar a rodovia Dutra, não antes das 18h30. De novo era o bandeco, mas dessa vez o da humanas mesmo, deixava muito a desejar, quase sempre um hambúrguer no molho, odiava. Aula até as 23h. Vez em quando pulava a aula - um bar, porque ninguém é de ferro. No geral, tomava uma van enlouquecida que me levava pra uma parada, meio escura e sinistra, na frente da antiga estação de trem, e de lá tomava finalmente meu 2626. Chegava em casa, já era pra lá de meia noite. E o ciclo se repetia de segunda a sexta. Mas aos sábados, não. Eu me recusava a seguir a escala de obra designada pela supervisão, e ficava lá, no abajur, porque aquela obra fazia todo sentido pra mim. Falava sobre essa energia de trabalho que faz esse mundo, que não gostamos, girar sem parar. Eu me deslocava por três regiões diferentes em SP (e outra cidade) todos os dias. Somando os trajetos, eram mais de 90 quilômetros por dia. Passava quase 8 horas diárias em trânsitos de um lado para outro.

O abajur então, naquele ano, se tornou um lugar onde eu podia pensar na minha vida, e na vida comum que eu partilhava. Hoje, quando lembro dessa obra, me remeto aos entregadores de aplicativo. Dez anos depois, estamos num contexto pandêmico, mais um fim de mundo se soma à nossa história. E eles estão lá, fazendo a roda girar, sem cessar, carregando as coisas ordinárias e extraordinárias em suas bags de isopor, com logotipo estampado.

Lembro daquele universo desconhecido das artes. Seus circuitos, seus dialetos burgueses, as roupas descoladas 100% algodão orgânico livre de exploração humana, que custavam mais que a bolsa mensal que recebíamos pelo estágio. Aquele ambiente era todo contraditório. As discussões eram difíceis de acessar. Pra mim era só trabalho, um trabalho que não sabia bem como tinha conseguido, mas que por meio dele, descobri, ainda que de forma meio confusa e inconclusa, pra quê servia a arte.

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